Por A. Almeida
O ginásio carregava o nome do santo,
mas milagres, só com o recibo em dia.
Se a mensalidade não pagasse,
o banco da aula virava memória,
e o menino era jogado ao ofício precoce:
barbearias, balcões de bar,
o mercado, com facas afiadas,
ou oficinas sujas de óleo e sonhos gastos.
O curso ginasial era um calvário.
Admissão, um muro intransponível.
Português, História, Geografia,
perguntas longas, respostas curtas,
e a reprovação reinava absoluta.
Os não-aprovados voltavam à vida bruta,
desossando bois ou alinhavando esperanças.
Eu, porém, me entreguei aos livros,
manhãs de aulas, tardes de tarefas,
e à noite, os candeeiros iluminavam
meu futuro em letras e fórmulas.
Eu passei.
Entre os primeiros, deslizei pela fenda estreita.
Ganhei uma farda, sapatos austeros,
“não chute pedras, não pise em poças,”
e uma pilha de livros, uma caneta tinteiro,
meu troféu de papel e tinta.
A novidade, um desafio, tinha aula de francês.
Era chique e estrangeiro.
Madame, a professora, esposa do prefeito,
nos fazia sentir europeus,
Eu, quase europeu,
decorava a cartilha à luz dos candeeiros,
como se Paris fosse Camaçari,
atrás das páginas.
E entre ça va e merci,
media minha geografia e história com notas medianas.
Um dia, ela chegou:
a psicóloga, palavra misteriosa.
Nos obrigaram a riscar papéis,
responder perguntas, desenhar árvores com raízes invisíveis.
Era o polo petroquímico que rondava,
inquiria, media o peso de nossas mentes
em balanças imprevisíveis.
Então, a surpresa.
Sala da diretoria, olhos sobre mim:
“É ele,” disseram.
Eu, o improvável,
entre rabiscos e respostas tirei a maior nota,
superando turmas mais avançadas.
Mas a vida, sempre ela,
mudou a curva.
Minha vó adoeceu,
Salvador nos chamou,
e lá, a escola não pedia moedas.
Era municipal, gratuita,
e o saber, enfim, não tinha mais pedágio.
E assim segui,
com as raízes que desenhei um dia,
procurando solo fértil
onde pudesse crescer.
Hoje, penso no São Thomaz.
Nos que ficaram,
nos que seguiram.
E no milagre que fiz:
aprender a sonhar,
mesmo com os pés fora das poças,
mas sempre no chão.
Camaçari: “O Morro da Manteiga”
Por A. Almeida
Nas tardes quentes de verão,
o balneário com lama cinza
e águas frias, dádiva antiga,
era um sussurro da natureza.
Um rio caudaloso cortava o coração,
serpenteando o centro,
rumo ao bairro da Bomba.
Ali, sob a ponte do trem,
a parte mais funda escondia
o frescor que o calor não vencia.
O banheiro dos homens era um descampado,
despido de mistérios,
enquanto as mulheres se perdiam
na sombra das árvores,
na mata fechada,
onde a privacidade dançava com o vento.
Estradinhas levavam aos cajueiros,
floridos no outono,
carregados de promessas no verão,
e, no morro da Manteiga,
a vista era a glória dos aventureiros.
Lá do alto, a cidade parecia pequena,
um segredo contido no horizonte.
Camaçari, terra de veranistas,
dos que chegavam e ficavam,
como eu, descobrindo o mundo
entre mato, lama e rio.
Hoje, o rio é só memória,
o balneário virou concreto.
A grande máquina desviou as águas,
devorou os cajueiros,
silenciou os ventos da mata.
Só nos resta o morro da Manteiga,
solitário guardião do passado.
O resto, a devastação levou,
como quem apaga com pressa
as linhas tortas de uma poesia
que já não cabe mais no papel.