Nascido com uma colher de chá de vinho do porto na boca
Minha chegada ao mundo foi acompanhada por um ritual inusitado e cheio de simbolismo. Lá no interior da Bahia, pelas mãos habilidosas de uma parteira, fui apresentado ao mundo com um toque único: uma colher de chá de vinho do porto, o primeiro sabor que conheci antes mesmo do leite materno. Imagine só, um recém-nascido recebendo um gole tímido de algo tão sofisticado. Era como se, naquele momento, minha ligação com o vinho estivesse sendo selada para sempre. O aroma doce e o calor daquela bebida marcariam minha vida de maneiras que eu só entenderia muito tempo depois.
Meu padrinho, que também era o farmacêutico da cidade, tinha uma história peculiar sobre o vinho do porto. Naquele dia, ele foi chamado às pressas para atender uma jovem mãe italiana que acabara de dar à luz. Depois de aplicar aquela famosa injeção com seringa fervida em álcool — prática comum na época —, recebeu como pagamento uma garrafa de vinho trazida pelos italianos que fugiram da Segunda Guerra. Era um presente simples; uma herança cultural embalada em vidro. Aquelas histórias de resistência e superação acabaram também se tornando parte do meu imaginário, conectando o vinho à força da vida.
A escola do vinho: a sacristia e a travessura
Minha verdadeira iniciação no mundo dos vinhos aconteceu na sacristia da igreja. Como sacristão, junto com outros meninos, descobrimos o tesouro escondido do padre: um estoque de vinho de missa doce e irresistível. A cada gole, sentíamos que estávamos provando algo proibido e celestial ao mesmo tempo. Quando o padre percebeu que as garrafas estavam esvaziando misteriosamente, sua reação foi digna de um sermão bíblico. Fomos castigados com trabalhos intermináveis na igreja e rezas sem fim, mas a criatividade adolescente nos levou a uma “solução”: completar as garrafas com urina. O resultado fermentava rápido, e o vinho, apesar de adulterado, mantinha o sabor doce e característico.
Se o vinho abriu as portas para o prazer dos sentidos, foi o cinema que expandiu minha alma. Nas noites de quinta-feira, a paróquia exibia filmes religiosos, e “Marcelino, Pão e Vinho” se tornou o meu favorito. Assisti mais de 70 vezes à história do menino órfão criado por monges, que encontrava consolo e sentido em compartilhar pão e vinho com uma imagem de Cristo crucificado. Aquela simplicidade tocante mexeu comigo, criando uma conexão entre a arte e a espiritualidade que levo até hoje. Cada cena parecia uma extensão da minha própria jornada, onde vinho e fé caminhavam lado a lado.
Cresci aprendendo que o vinho é uma bebida boa; é uma metáfora para a vida. Do primeiro gole na infância até as histórias que ouvi e vivi, ele se tornou um símbolo de celebração, sacrifício e humanidade. Cada taça que levanto hoje traz um eco daqueles momentos iniciais, quando uma colher de chá de vinho do porto me apresentou ao sabor da vida.
Agora vamos falar do pão, o pão de Natal: o panetone
Aventais a postos, vamos para a cozinha.
Panetone gostoso Da família “ALMEIDA”